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Propriedade intelectual, saúde e segurança do consumidor

Quais os impactos que o consumo de bens que são produzidos com violações a DPI têm no bem-estar do consumidor?

A violação de direitos de propriedade intelectual (DPI) nas suas várias formas é bem conhecida por gerar efeitos negativos nas economias inclusivas e voltadas ao desenvolvimento, tais como: prejuízos imediatos aos titulares dos direitos respectivos (direitos autorais, marcas, patentes, modelos de utilidade etc.), desincentivos a investimentos em pesquisa e desenvolvimento (pois ninguém quer investir na criação de obras e nem na geração de novos conhecimentos se não puder internalizar, de alguma forma, as externalidades positivas de tais atividades), e maior desemprego, onde o emprego remanescente está relacionado a atividades de menor utilidade social (as pessoas, em vez de procurar agregar conhecimentos para gerar valor, procurarão, se engajar em atividades que destroem valor associadas à pirataria, à contrafação e ao contrabando, como, por exemplo, a manutenção de cadeias de logística e distribuição que integram o crime organizado), dentre outros.

No entanto, apesar de todas essas consequências sociais nefastas, decorrentes da violação de direitos de propriedade intelectual, muitos consumidores, de forma deliberada ou não (muitas vezes a preços bem atrativos), adquirem bens produzidos dessa forma e expõem a riscos sérios os bens mais preciosos que uma pessoa pode ter: sua vida, sua saúde e sua segurança. Tanto a do próprio consumidor quanto a de sua família. Obviamente, embora tenhamos acesso a uma miríade de tratamentos e medicamentos na atualidade – notoriamente frutos da pesquisa e desenvolvimento que são viabilizadas por instituições que protegem direitos de propriedade intelectual – não há dinheiro que compre saúde, e, nem, muito menos, a vida.

E isso leva ao tema deste artigo: quais os impactos que o consumo de bens que são produzidos com violações a DPI têm no bem-estar do consumidor?

É necessário – e muito – olhar quais os riscos que os bens produzidos “dentro das regras do jogo” oferecem ao consumidor. Isso se dá normalmente por meio de políticas públicas voltadas à proteção de sua saúde e de sua segurança (tais como normas para emissão de alertas de risco e para formas de divulgação de informações sobre o manuseio de produtos, além de políticas de chamamento de produtos que ofereçam risco à saúde e à segurança do consumidor).

Todavia, é igualmente importante atentar para os riscos que produtos pirateados ou contrafeitos (produzidos no próprio país ou provenientes do exterior) oferecem à vida, à saúde e à segurança do consumidor. Afinal de contas, uma vez que esses bens são produzidos em processos que desobedecem às regras do jogo, é de se esperar também que não atendam às exigências legais mínimas para que possam ser consumidos de forma a minimizar tais riscos. Não é à toa que o art. 18, § 6°, inc. II, do CDC, determina que são impróprios ao uso e consumo, dentre outros, os produtos alterados, adulterados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde ou perigosos. E, aqui, é crucial o papel do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP) como fórum de discussão interinstitucional para a promoção de políticas públicas de defesa do consumidor.

Com efeito, produtos pirateados e contrafeitos ou associados a tais características (que vão desde lentes de contato, passando por brinquedos, alimentos, roupas – especialmente quando produzidos com insumos que violem direitos de propriedade intelectual – dentre outros1) não atendem a requisitos mínimos para a saúde e à segurança do consumidor e impõem uma série de externalidades negativas na forma de gastos públicos para o tratamento dos consumidores lesados, além das perdas decorrentes dos dias de trabalho parados, sem prejuízo das perdas inestimáveis quando acidentes de consumo levam o consumidor à morte ou trazem-no sequelas permanentes. Aqui, é de se esperar que o consumidor tenda a tomar decisões baseadas apenas no preço do produto, sem considerar as consequências futuras (de médio ou longo prazo), fazendo com que se institua um processo de seleção adversa de fornecedores, onde aqueles que produzam produtos mais caros – porém mais eficientes e menos perigosos e nocivos ao consumidor – sejam colocados para fora do mercado caso não haja algum arranjo institucional que consiga contrapor esse “mercado de limões”, no dizer de George Akerlof2, o qual favorece à manutenção de fornecedores de bens nocivos e/ou perigosos no mercado.

Além disso, deve ser mencionado o risco ambiental que tais produtos podem oferecer, a exemplo do emprego de defensivos agrícolas que violem direitos de propriedade intelectual (fungicidas, pesticidas etc.) na produção de cultivares que integram a cadeia de produção alimentícia e têxtil (dentre outras), cujo descarte não se submete a nenhum processo de logística reversa e cuja composição normalmente não obedece à legislação brasileira. Isso pode levar a externalidades negativas, como a contaminação de solos e de lençóis freáticos e a intoxicação de populações que habitem a localidade das fazendas em que tais produtos sejam aplicados, além de gerar prejuízos significativos à biota, que podem se estender para além da área circundante ao local de aplicação. E tudo isso sem deixar de mencionar todos os efeitos nefastos que o consumo dos bens produzidos com o emprego de tais defensivos traz ao organismo.

Nesse cenário, e mantidas idênticas todas as demais variáveis, focar apenas na regulação de produtos “legais” e descurar das ações de prevenção e repressão à pirataria e à contrafação podem significar a institucionalização de um duplo standard regulatório que eleva o custo de oportunidade para quem tem interesse em se manter na legalidade, pois isso implica num aumento do custo relativo de produção do bem “legal” em detrimento do ilegal. E, como se sabe, a decisão de se adquirir bens piratas ou contrafeitos é, sobretudo, uma decisão racional, ainda que a racionalidade humana seja limitada por uma série de vieses (tais como o excesso de otimismo e o efeito de dotação) e heurísticas (como a heurística da disponibilidade, a da representatividade, a da ancoragem e a da confirmação).

É importante investigar por que, apesar de tantos riscos relacionados a produtos piratas e contrafeitos, tantas pessoas continuam expondo a sua vida e a sua integridade física – assim como de suas famílias – com o consumo de tais bens. E tudo isso num cenário em que há uma aquisição crescente de bens pirateados e contrafeitos em plataformas online, que chegam nas mãos de tais consumidores por meio de pequenas encomendas (as chamadas small parcels), o que impõe a necessidade de se repensar as ações de prevenção e repressão de tais delitos dentro do atual cenário de ampliação exponencial da economia digital. Apesar disso, é possível assumir que tal decisão seja racional (não sendo defendido, aqui, que ela seja lícita ou que deva ser, por qualquer forma, estimulada) na medida em que o consumidor tem uma tendência de subestimar o risco de eventos futuros que lhe sejam prejudiciais (viés de otimismo excessivo).

Esses eventos futuros prejudiciais decorrentes do consumo de produtos pirateados e contrafeitos não trazem apenas efeitos diretos na saúde do consumidor e da sua família, mas também trazem outros riscos à sua integridade física e a seu patrimônio. Esses outros riscos decorrem do fortalecimento financeiro de organizações criminosas cujas atividades estejam relacionadas à circulação de tais bens, as quais patrocinam instituições extrativistas calcadas apenas na expoliação e na transferência compulsória de riqueza gerada pelo produtor promovendo ordens de acesso restrito. Tais ordens de acesso restrito, por sua vez, desestimulam a competição baseada na igualdade entre players, na inovação e na não-violência, ao passo em que sufocam as instituições associadas às sociedades de acesso aberto, que não conseguem recursos para o custeio das ações necessárias à manutenção da liberdade e de direitos de propriedade minimamente definidos, delimitados e respaldados na segurança jurídica3, condições estas essenciais para a manutenção de um ciclo sustentado de desenvolvimento no longo prazo.

Como se pode ver, não bastam apenas ações de prevenção e repressão contra as violações de direitos de propriedade intelectual. Afinal de contas, a capacidade de o Estado exercer o monopólio da violência é limitada pelas receitas que realiza, normalmente por meio da tributação. E não há Estado que consiga elevar alíquotas indefinidamente, pois, a partir de um certo nível de tributação (ao que se dá o nome de pico da curva de Laffer), espera-se que suas receitas caiam, em vez de aumentarem.

Também é necessário que o consumidor repense seus valores – isto é, é necessária a modificação das instituições informais da sociedade, no dizer de Douglass North – para que veja que o consumo de bens pirateados e contrafeitos gera riscos e danos à toda a sociedade, inclusive a si mesmo e à sua família. Nesse cenário, o CNCP é uma peça chave para congregar diversos atores sociais no sentido não só de direcionar quais devem ser as ações de prevenção e repressão à circulação ilícita de bens pirateados e contrafeitos, como também de ações de conscientização e educação do consumidor sobre os efeitos nocivos desse tipo de consumo, os quais, como visto, ameaçam desde a integridade física do consumidor até as instituições basilares para o desenvolvimento do país.

1 Cf. ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE); ESCRITÓRIO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DA UNIÃO EUROPEIA. Trends in Trade in Counterfeit and Pirated Goods. OECD Publishing: 2019, p. 75.

2 AKERLOF, George A.. The Market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3, 1970, p. 488-500.

3 Cf. NORTH, Douglass; WALLIS, John Joseph; WEINGAST, Barry R. Violence and Social Orders: a Conceptual Framework for Interpreting Recorded Human History. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 23 et seq.

LUCIANO BENETTI TIMM – Pesquisador de Pós-Doutorado na Universidade de Berkeley, Califórnia. Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia. Professor de Direito e Economia da FGVSP e da UNISINOSRS. Secretário Nacional do Consumidor.

LEONARDO ALBUQUERQUE MARQUES – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da graduação e da pós-graduação da Universidade CEUMA/MA. Coordenador-Geral de Consultoria Técnica e Sanções Administrativas do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria Nacional do Consumidor. Presidente Suplente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria.

Fonte: JOTA